sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Uma consoada diferente



25 de Dezembro de 2009 – madrugada adentro, noite fria por fora, inicia-se a consoada deste natal diferente na tebaida de um escritor (entenda-se um tipo que ganha a vida a escrever livros e outras coisas que dão dinheiro para a sopa). A dúvida é se a mesa é suficientemente grande para tantos convidados! ; foram chegando ao longo da semana pela mão de pessoas, da triste realidade e ainda por via da veemente intimidade a que nos obriga a solidão.
Aristides de Sousa Mendes veio para contar a sua história; Gabriel Garcia Márquez também, e nenhum gosta de bacalhau cozido, o que é um descanso para mim; entretanto chegou o Ricardo Araújo Pereira com as crónicas debaixo do braço e com uma fome desgraçada; o último a chegar foi o Chico Manata, residente do “hotel estrela” e que apenas trazia fome e um cartão novo acabadinho de receber pelo pai natal para dormir esta noite de consoada no aconchego do passeio da avenida da liberdade.
Cada um portador da sua filosofia de vida, todos capazes de se rirem de si próprios, antes de se sentarem à mesa olharam-me a estante dos livros de sempre e ainda sugeriram que se convidasse o Fernando Pessoa, apesar de muito coçado, mas a maioria votou contra, até porque o tipo era um facho do carago , sidonista assumido, há quem diga que pouco amigo do sexo oposto e ainda por cima esquizofrénico! Era só o que faltava para uma consoada como esta. Da política colombiana à fuga dos judeus para Portugal, tudo foi esmiuçado na nossa ceia da passada madrugada. Só o Chico Manata comia para mais uns dias de avenida da liberdade, como ele dizia “a trabalhar para a linha” e depois assoava-se ao guardanapo e limpava os olhos à manga da gabardina que lhe aconchega o frio dos últimos cinco anos.
A porra da televisão está sem som, como deve de ser, porque aqui a missa é outra e outros galos cantam… aqui as orações são mais revoltas que esperanças e a fome de que se fala é mais a dos outros – dos sem-abrigo como o Chico Manata, dos putos à volta dos contentores de lixo na cidade da Praia, dos reclusos de todas as espécies, das crianças da Somália, da Etiópia, do Uganda, de Darfur e dos outros países onde nem existe o conceito de fome porque não existe o conceito de alimentação, das mães desesperadas porque as mamas lhes secaram e nada lhes resta a não ser assistir à morte dos filhos de olhar branco e parado, como o dos veados à espera de serem abatidos. Enfim… dos 800 milhões de seres humanos que no planeta vivem à fome.
Com excepção do Chico, todos deixamos o bacalhau no prato, desligou-se a televisão e fomos à vida. Esta manhã, tinha um bilhete debaixo da porta com um poema que não leio para não vos estragar o natal; era do Chico Manata a agradecer o resguardo da minha soleira, onde apreciou o aconchego do novo cartão-cobertor do pai natal deste ano.
Virei-me para o Fernando Pessoa, de olhar cabisbaixo, e disse-lhe: sobre estes gajos é que tu nunca escreveste, meu cabrão, e o poeta calou-se, envergonhado dentro de uma das suas personalidades.
Para o ano prometo convidar outros convivas e continuar com a televisão sem som.

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