sábado, 30 de maio de 2009

Carta para o “poeta”, um cão com alma de gente…


Não é fácil escolher as palavras, tão pouco adjectivos, para descrever a perda de dezasseis anos de afectos e cumplicidades. Mas é imperioso que as raridades se registem.
Depois dos primeiros anos de silenciosos olhares num escritório onde entravas sorrateiramente e te deitavas debaixo de uma mesa onde eu enchia folhas brancas, reencontramo-nos num dia de Inverno, debaixo de chuva, muitos quilómetros depois. Um abraço definitivo devolveu-nos o aconchego das cumplicidades e do diálogo de sinais, de noites inconfessáveis de segredos e fidelidades. Entretanto, os anos caíram-te em cima sem dó nem piedade, envelhecemos e, às vezes, envilecemos lado a lado, sempre os dois, no perfeito compromisso entre o cão e o seu dono. Foste o único que me viu no rosto a desnudada verdade da dor e do amor, e guardaste esse nosso segredo com o respeito e o carinho que só um cão especial pode dar.
Escolheste um dia de Primavera para partir a caminho do merecido repouso, depois de teres marcado este dono com cada gesto, cada olhar, cada atitude, como se de versos soltos e vírgulas de um poema se tratasse. Afinal, nada acontece por acaso e não terá sido por acaso que alguém te baptizou de “poeta”. O teu carácter inquebrantável, a tua personalidade férrea, que mais parecia de gente rara, ditavam a música da poesia que fruía do nosso convívio. Teimoso, cioso e infeliz como um verdadeiro vate, tu, meu cão, ficas gravado para sempre na minha alma de humilde pecador. Entretanto, é do teu olhar vítreo e parado com que enfrentaste a morte, que jamais me esquecerei, porque afinal a morte tem rosto e abraçou-te sem que eu pudesse salvar-te. Perdoa-me esta impotência humana. Só agora percebo os teus olhares de aviso dos últimos dias, os carinhos finais que me pedias, poeta, e em que eu nunca acreditei, porque não queria perder-te. Mas perdi-te, ou talvez não, depois daquele último olhar lateral a pedir um último abraço de despedida. Abracei-te para sentir o estertor do teu adeus, beijei-te e chorei a tua morte como uma parte de mim, meu cão. Escrevo-te hoje, um dia depois, como quem escreve uma última carta de amor. Talvez um dia voltemos a brincar e a falar aquela linguagem que só nós entendíamos. Enquanto isso, os homens continuarão piores que todos os cães, e muito poucos serão dignos do teu carácter e da tua fidelidade. Até amanhã, meu cão.

1 comentário:

Crux **** disse...

Saudades do meu poeta:):)